quinta-feira, junho 16, 2005

Ausência de Presença e outras Redundâncias

- Senti sua ausência...
Disse o rádio do meu carro.

- Não, não sentiu!
Respondeu o CD do Queen que eu perdi.

- Claro que senti.
Afirmou com veemência o rádio.

- Creio que está enganado.
Retrucou o disco de plástico.

- Como você pode dizer uma coisa dessas, meu velho amigo?
O aparelho perguntou visivelmente ofendido.

- Partindo da idéia de que a minha ausência significa que eu não estava aqui, e que no meu lugar havia uma grande quantidade de nada, creio que nada não pode causar qualquer sentimento, não acha?
Expôs o cd, reluzindo a ilustração do Freddie em sua superfície, com tanta clareza e eloqüência que fez a alavanca do câmbio acordar de seu ponto morto e o porta-luvas cochichar alguma coisa com os outros cds em seu interior.

- Faz sentido. No entanto quem disse que não havia coisa alguma aqui em seu lugar? E se algo que estava aqui me causava alguma sensação e portanto a sua ausência permitia que este outro algo estivesse aqui me causando algum tipo de sensação?

A conversa atingiu tal nível de profundidade que o câmbio se alojou confortavelmente na quinta marcha, prevendo a longa jornada que a conversa poderia tomar. O mesmo nível de profundidade chamou a atenção também do aparelho de ar condicionado que demonstrou um interesse particularmente especial na frieza com que a conversa estava sendo conduzida por "velhos" amigos.

O tal nível de profundidade causou um profundo desinteresse no porta-luvas e seus amigos cds, que preferiram continuar fazendo absolutamente nada à prestar atenção em uma discussão sobre o nada e suas particularidades e que provavelmente não chegaria em nenhum lugar de particular importância (como de fato não chegou). Mas continuemos.

- Mas então, caro colega - continuou o cd com seu raciocínio lógico - não foi a minha ausência que você sentiu, mas sim a presença de outro que não eu, cuja presença residia no lugar que outrora fora ocupado por mim e exatamente por este fato a associação é não apenas compreensível, mas também óbvia e esperada.

Os bancos dianteiros se olharam e tiveram a impressão de que este diálogo era de alguma forma familiar em sua forma, enquanto o banco traseiro, em sua solidão costumeira, concluiu sozinho que a coisa estava na direção de um debate entre juristas, ou ainda pior, entre parlamentares se aproximando de um confronto direto através das vias de fato, algo que geralmente causa um grande alvoroço nos meios de comunicação, em especial na imprensa, que certamente apreciaria algo assim se já não estivesse apreciando algo assim atualmente.

- De qualquer forma, foi a sua ausência a causa da minha sensação em primeiro lugar - o velho rádio disse - e se a sensação em si é apenas conseqüência, não faz sentido culpar a conseqüência e ignorar a culpa da causa, no caso, a sua ausência, meu jovem.

O distanciamento crescente e evidente no uso dos invocativos demonstrou que o papo não ía bem, muito pelo contrário, bem no caminho do contrário do bem. Isto provavelmente teve algo a ver com o desfecho dramático dos eventos relatados aqui, e caso todos os envolvidos tivessem dado alguma atenção ao que o escapamento tinha a dizer, talvez tudo aquilo tivesse tomado uma outra direção, com o perdão do trocadilho.

- Oras, mas que pensamento criativo, meu senhor - debochou o cd - Talvez, se você tivesse dedicado mais tempo a pensamentos como esse, teria sentido muito menos os efeitos gerados pela minha presença em outro lugar e de uma outra presença no lugar da minha, que era apenas ausência.

Vale a pena citar que apesar de não ter dito nada, o escapamento se expressou como pôde, o que gerou muitos protestos das molas da suspensão e muitos risadas entre os tapetinhos de borracha dianteiros que não perderam tempo em fazer piadas, muito interessantes por sinal, sobre o funcionamento exemplar do catalisador, que em breve deixaria de ser o assunto principal entre eles diante da apoteose de eventos que encerraria a conversa principal e todas as secundárias que se originaram à partir dela.

- Mas meu jovem - o rádio pacientemente verbalizou do alto de sua longevidade e experiência em diversos outros veículos automotores, claramente esnobando o cd do Queen que era apenas uma coletânea lançada há menos de um ano - Esse é o problema com a juventude de hoje, vocês se preocupam apenas com o foco e esquecem completamente o restante do campo de visão que um assunto pode atingir.

O rádio estava certo, mas ao mesmo tempo errado, pois ele próprio se traiu. Embora seus argumentos fossem, de fato, razoáveis quanto à abrangência de um campo de visão em um argumento, ele pecou por deixar de prestar atenção no seu campo de visão físico, que já não era dos maiores, e ver o caminhão desgovernado que vinha em direção ao carro, estacionado em uma ladeira com todos os seus equipamentos ocupantes e conflitantes, à tempo de alertar seus colegas sobre o impacto iminente e fatalmente destrutivo. Que poderia ter sido evitado, por exemplo, se o freio de mão estivesse prestanto atenção em qualquer outra coisa que não si mesmo, por estar visivelmente incomodado com o assunto.

O motorista do caminhão não se feriu. Já a amizade entre cd e rádio acabou muito antes de acabar, ou vice e versa.