Andava eu com um colchão nos braços.
Segundo as leis da "Randômica", os fatos aleatórios propensos a acontecer em qualquer dia são absolutamente impensáveis e desprovidos de maiores explicações. Aceitemos, assim, as coisas como elas são e tiremos proveito delas para ao menos sorrir.
Levando isso em consideração, andava eu com um colchão nos braços.
Estava em um bairro residencial, cheio de casinhas, algumas simples e outras um tanto mais elaboradas. Há até mesmo um cortiço nesta mesma rua, logo de frente à padaria que vende sanduíche de pernil aos sábados. Vizinho à padaria, há o mecânico que me ajudou quando cheguei na cidade com um parafuso quebrado na bandeja de sustentação da roda dianteira esquerda do meu carro.
Assim, andava eu com um colchão nos braços.
Na rua de baixo, pelo dia ser quinta, instala-se a feirinha que exala o odor de pastel e caldo de cana característicos. Curiosamente, todas as quintas, passo ainda por uma outra feira que acontece no caminho que faço diariamente. Um segunda feira todas as quintas-feiras.
Mas o que importa é que andava eu com um colchão nos braços.
Uma amiga que está se casando nesta semana me pediu o colchão, para poder hospedar mais parentes em casa. Embora diga o ditado que "quem casa, quer casa", quem precisa de casa nesse casório são os parentes. A noiva, no caso, embora casando, estava com problemas para passar adiante a casa antiga, mas esqueci de perguntá-la se isto já está resolvido. O caso da casa que sobrou no casório. Curiosamente, a casa, no caso, é um apartamento.
Voltando ao assunto: Andava eu com um colchão nos braços.
Não deve ser um visão muito comum. É algo que naturalmente chama a atenção dos transeuntes. Todo o meu trajeto com o colchão não é maior que o de duas quadras, mas, por ser dia de feira, quinta, haviam mais pessoas pela rua do quem em qualquer dos outros dias da semana. Também pelo dia ser de feira seria a razão pela qual estaria aquela senhora pedinte por ali, quando lhe cruzei o caminho e, obviamente, lhe chamei a atenção.
- Dá pra mim esse colchão? - disse ela.
Embora ela provavelmente precisasse do colchão mais do que eu e do que os parentes de minha amiga noiva, eu não poderia dar-lhe por 3 razões:
1) Havia prometido emprestar o colchão.
2) O colchão nem é meu, mas de minha avó, que me emprestou o dito cujo quando vim para a cidade, uma vez que a cama que hoje uso era ocupada por outra pessoa àquela época.
3) Eu não queria dar o meu colchão (da minha avó) pra ela.
A razão n.1 era um tanto elaborada e me deu preguiça de explicar. A razão n.3 era mesquinha demais e qualquer pessoa com um mínimo de vergonha, jamais diria isto à tão necessitada velhinha. A razão n.2, portanto, me pareceu um bocado apropriada para a ocasião, e nem precisaria mentir, o que é sempre louvável.
Toda esta reflexão levou aproximadamente 3 segundos, que foi o tempo que levei para responder-lhe:
- O colchão não é meu. Não posso lhe dar o que não é meu.
E ela me responde, com o sorriso mais honesto que a sua boca sem dentes (ou quase) poderia me dar:
- Claro que pode... O tempo todo, as pessoas me dão o que não é seu. Hoje mesmo me deram uma banana, que não era sua, ali na feira.
O meu tropeço na calçada foi apenas uma expressão física do tropeço no meu raciocínio. Estaria eu às voltas com um enigma digno de Malba Tahan? Ou uma pegadinha de programa de auditório? Ou ainda uma questão capaz de corromper o próprio tecido do espaço-tempo contínuo? Seria a velhinha a personificação humana do acelerador de partículas LHC?
Ao pensar brevemente sobre o assunto, percebi que a filosofia semântica das sábias palavras curiosas da velhinha. Pondo em cheque o meu direito de propriedade e poder de decisão sobre o futuro do colchão, a pobre senhora levantou uma outra questão: A questão entre a ética e a honra.
Ético seria dar o colchão à velhinha enquanto honrado seria eu cumprir a minha palavra e emprestar o colchão à minha amiga.
Infelizmente as obrigações da vida fazem com que passemos por cima das questões mais importantes acerca dos mistérios do mundo. Já era tarde e eu não poderia me atrasar para o trabalho, inclusive porque no dia anterior eu havia sido advertido sobre atrasos. Sendo assim, na obrigação de lidar com a situação o mais rápido o possível, fiz o que me pareceu mais funcional naquele momento: Apenas sorri para a velhinha e dei de ombros, como quem dissesse "pode até ser, mas esse colchão você não leva".
A velhinha não me achou digno nem mesmo de uma expressão facial como resposta. Virou as costas e seguiu o seu caminho. Da mesma forma segui eu o meu, sem jamais saber com que tipo de mente brilhante eu poderia ter travado um diálogo inesquecível.
Logo adiante virei a esquina e segui pela calçada, onde andava eu com um colchão nos braços.
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